terça-feira, 16 de junho de 2009


 

Sabes ás vezes parece que me faltaram os teus conselhos sábios como são todos os que nos dão os pais. Devia ter imaginado que és um ser hermético, que , tal como eu, vives num mundo interior tão intenso que se torna quase impossível comunicá-lo, mas é só agora que consigo percebê-lo. È só  agora que tudo me parece mais claro e triste, perdemos nem sei quantos anos de intimidade, nem sei quantos anos em que podíamos ter falado da nossa poesia, dessa maneira singular como vamos entendendo o mundo. Já pensaste na quantidade de vezes que as coisas lindas ficaram por dizer enquanto cada um de nós se interrogava se seria o único a pensar assim? Quantas vezes teremos pensado em simultâneo se estaríamos sozinhos nessa missão diária de apreender, pedaço a pedaço, a poesia que vai escorrendo da luz do entardecer, da beleza singular de alguém com quem nos cruzamos na rua e para quem ninguém olha mais que uma vez? Quero que percebas que não te responsabilizo exclusivamente a ti  por esta perda, também eu não fui capaz de deixar que no momento certo fosse a minha alma a falar e nas raras ocasiões em que isso aconteceu foi a vergonha, essa traidora irresistível, a obrigar-me a disfarçar. Recordo dois episódios desse romance com o embaraço. O primeiro nem me lembro bem da idade que tinha, mas devia andar pelos doze anos, o que nos transporta para o final dos anos 80, estamos em Dezembro é quase Natal, vivemos ainda naquele apartamento na Parede, eu e a Catarina montamos e decoramos a árvore de natal, com o entusiasmo enorme de um costume recentemente adquirido, enquanto tu na sala examinas, como só tu sabes fazer, a tua biblioteca em construção e ouves em fundo o “ Adeus tristeza  “ do Tordo, música que até hoje me faz ficar com um nó na garganta e um aperto no coração. Naquele momento, sem dares por isso, pareceste-me a pessoa mais triste do mundo. Limitei-me a ir ter contigo, abraçar-te e chorar enquanto lá atrás se ouvia “ adeus tristeza até depois sinto-me triste por saber... “ .”- O que é que se passa, o que é que tens ?” perguntaste-me tu e antes que eu pudesse responder, antes que eu conseguisse dizer-te que via aquela tristeza toda mas que não fazia mal porque era bonita, antes disso apareceu-me a vergonha, hesitei, afinal de contas não queremos todos ser normais? Disse-te uma mentira qualquer, que tinha apanhado um choque ao ligar as luzes da árvore do nosso novo Natal e assim ficou tanta coisa por dizer. O segundo episódio passa-se poucos anos mais tarde numa noite mágica de euforia. Caminhamos lado a lado em direcção ao estádio José de Alvalade, ocasião grande, as ruas cheias de gente, berros e cheiros, a emoção deixa-nos extasiados e no meio de tudo isto eu solto a frase que me ribombava na cabeça desde que me tinha deixado invadir por aquele ambiente “- ... e a noite encheu-se de verde ... “ . Lembro-me como se o estivesses a fazer aqui e agora, a tua cara iluminou-se inteira, daqueles sorrisos de quando se nos transborda a alma, e em tom de revelação quase profética, o que, como impunha a  situação, nos obrigou a parar no meio daquele mar de gente, exclamaste “ - ... isso é poesia ... “ e mais uma vez assaltado numa dupla investida pela vergonha e por um desejo incontrolável de normalidade voltei a mentir-te e a inventar que tinha ouvido aquilo a alguém num sítio qualquer. Mais uma vez tanta palavra por dizer. Chego, no entanto, a pensar se não é este o curso natural das coisas até porque cada um dos episódios de que falei desempenhou um papel muito especifico na construção da minha personalidade. O primeiro mostrou-me o poder da música quando a escutamos de peito aberto e lágrima pronta, algo que até hoje alimenta a minha relação de quase dependência com os meus discos, que quase funcionam como pílulas de humor. O segundo acredito que tenha sido um dos grandes catalisadores da minha vontade de escrever, de mostrar um dia ao meu  pai que tinha sido mesmo da minha cabeça que brotou aquele rasgo precocemente poético. Ainda assim lamento o tempo e as oportunidades perdidos, vamos bem a tempo é certo mas andámos muito distraídos. Tu e eu.

sexta-feira, 6 de março de 2009


Morre um dia inteiro em nós.
Respiramos um tempo
                                                    novo, nosso.
Exalamos passado.
Construimos uma vida
                                                    toda;
o amor veio,
                                                    sereno, etéreo, tácito.
Reiventámos a ausência;
fizemos do silêncio
a poesia dos dias;
Crescemos por dentro,
                                                    envelhecemos por fora.
A paixão,
traição do eterno,
                                                    ficou para nos fazer sorrir;
é outro o nosso Universo a dois :
                                                    tem dias de luz branca,
                                                    cumplicidades caladas,
                                                    simultâneos distantes;
e o coração,
ainda agora,
a bater depressa
                                                    depressa,
a fazer viajar um único sangue
                                                    o nosso;
e a tua pele branca a forrar a memória;
e a ternura
                                                     sempre a ternura
nosso mapa,
nossa paisagem contínua,
                                                     a nossa despedida dos fins e da tristeza
toda.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009


Hoje estive com o meu pai. Vi-o a acariciar os aneis, a olhar ansioso para a minha felicidade e a contar-me, envergonhado, com boca de puto, de mentirinha fácil como é sempre a modéstia, como estava espantado por ter sido, ainda agora, elogiado como o melhor da turma no curso de escrita criativa e poesia que anda a fazer. Dei por mim a esboçar um sorriso envergonhado como se aquela confissão fosse demasiado intíma. Mas não era. Não lhe disse na altura mas quero pedir-lhe agora:  Escreve-me!... Quando deixamos de falar, por razões que conhece o quotidiano nesse homicidio lento e requintado que a rotina pratica sobre todos os amores, escreve-me. Escreve-me... que eu quero escrever-te também e assim podemos reler sempre as palavras boas, ou mesmo as más se as houver, depois de devidamente destiladas na nossa poesia. 
Preciso que me humildes com a tua poesia. Que me lembres que há que querer sempre mais das palavras e da vida. Que me estremeças e que saibas embalar-me logo a seguir. Preciso  querer muito chegar aí onde estás agora mas também que te esforces sempre por já não estares lá. 
Desculpa pedir-te isto. Quero que me faças querer.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009


A gata não fala com a árvore.  Agora está ali a dormir. Aproveitou o meu casaco estendido na cama e aninhou-se para um sono profundo. A gata não desperdiça uma oportunidade para se deitar na nossa roupa. É uma gata de casa e essa roupa vem carregada de cheiros lá de fora. Assim deita-se, a sentir os rumores da rua e a sonhar com uma liberdade que não conhece.
Meu amor... 
Saí de casa cedo, ainda estavam pessoas a transportar os seus restos mortais em direcção ás casas e camas onde haveriam de os depositar ( jorge palma dixit ). Ficaste a dormir com a gata, como a gata. Suave, suave. Sem sonhos complexos onde te aflige sempre o amor a fugir. Afinal eu volto já. Deixei-te o meu calor na cama, arrumei as pranchas e os fatos e saí para o mar, ou só para ir ali e voltar para casa.
Saí da água já o sol prometia glórias ao dia. Vesti-me, deixei ficar o sorriso, pus uma música alto e voltei. 
Nas ruas agora misturavam-se os ocasionais turistas, madrugadores por definição, e uns quantos ansiosos aproveitadores de dias livres, quanto mais cedo começar mais dia livre se tem. A cidade já estava branca mas ainda não ofuscante, como costuma ficar quando o sol está com esta disposição, mas mais alto. 
Já ia chegar a casa com um dia novinho a começar para te oferecer mas nunca fica mal juntar umas flores. 
Quando entrei já deambulavas por ali com os pés descalços, os olhos por abrir e umas saudades...
Quando te dei as flores aquele dia novo a estrear que te trazia acendeu-se todo na tua cara. Assim, em meia manhã fomos felizes por vida e meia.
Hoje morreu a minha avó. Vinha numa auto-estrada qualquer quando me ligou a Isabel do numero do meu pai. Soube ali mesmo antes de ter atendido o telefone. Aliás soube antes. Quando a visitei da ultima vez que a vi. Já não guardava forças para nada a não ser aquele olhar de ternura e uma mão de pele macia que apertou a minha até que percebessemos os dois que diziamos adeus.
Sinto-lhe falta já.
Não chorei ainda.
Invadiu-me uma calma estranha.
Faço um esforço por sintetizar memórias, para lhe reduzir a vida toda ao nosso amor.
-Lembro, mais que tudo a tua meninice. A candura com que olhavas para a vida para que ela me fosse mais suave.
Não é fácil esta gestão da saudade.
Uma vida inteira a preparar-me para isto e agora parece só uma coisa longe.
Ontem foi o funeral da minha avó... Comoveu-me a familia dela. Cheia de gente tão diversa, tão longe de parentescos, vizinhanças, intimidades, obrigações.... Era só um grande clã de ternura. 
Aqui fica então um registo de declarações de amor a todos os que vão alargando e unindo esse grande clã de ternura que é mais que tudo, e de tudo, o que fica.